"Sinta a raiva, sinta a dor mas não manifeste ódio, com a fala; pequenos gestos não épicos, não extraordinários, de saber que eu posso sentir momentos de raiva, o exercício muito grande que temos ao longo da vida de buscar o equilíbrio, a sabedoria que eu procuro atingir antes de encerrar essa vida, a ideia que saiu de Sartre, na peça entre quatro paredes, quando ele imagina pessoas numa espécie de inferno claustrofóbico e uma personagem diz que o inferno são os outros.
Nós mudamos a ideia, porque tanto para alguns ramos da filosofia quanto para a grande maioria da ideia budista, o inferno começa a ser gestado, como no exemplo da história da monja, começa a ser gestado por nós mesmos. O inferno é uma opção de entrar em um discurso de ódio. O inferno é uma opção de eu ceder à raiva. O inferno é uma opção de eu transformar aquilo que eu discordo e o movimento destrutivo de aniquilação do outro.
Então o primeiro ponto é naturalmente desarmar pela consciência, pelo exercício, pela meditação, pela sabedoria, essa bomba relógio que nosso eu, nosso Narciso, nossa vaidade, produz em nós.
O primeiro problema que nós encontramos é aquele tirano interno, e essa é uma questão que lendo e tendo estudado várias fontes budistas, muitos filósofos, várias escolas que se aproximam do budismo dialogam com o estoicismo, lentamente você vai percebendo que é um exercício de domesticação pessoal, de uma ilusão do eu que vai se agarrar à minha consciência e eu tenho que me libertar exatamente dela. E eu me liberto dela me libertando dessa vaidade, me libertando da raiva, me libertando de pequenas coisas que eu procuro seguir e que a mão já diz: não escrever o palavrão porque ele contém uma capacidade de agressão que atinge a pessoa e atinge a mim.
Como eu disse, citando um monge que conheci em (.......) na China, quando eu atiro uma brasa cheia de raiva em alguém, talvez eu atinja a pessoa com a minha palavra que abrasa incandescente, mas em 100% dos casos eu queimo a minha mão. Então o problema não está apenas em ser compreensivo com os outros, não por uma caridade ou uma compaixão externa mas foram uma educação interna que coloca no meu caminho - como me ensinou um religioso jáinista na Índia - que coloca no meu pai um caminho pessoas difíceis para que eu queime Karma e algumas pessoas queimam Karma em terceiro grau rapidamente e com intensidade.
Toda vez que alguém me enfrenta toda vez que alguém discorda de mim ela está sugerindo que eu saia da minha zona de conforto, está sugerindo que minha vaidade não me domina, está mostrando que eu sou limitado em relação ao universo, está me convidando a crescer. Todas as vezes que alguém concorda inteiramente comigo, me elogia e acha o máximo qualquer bobagem que eu digo, essa pessoa está favorecendo meu Narciso, ela está favorecendo meu eu que está impedindo que eu cresça.
Quem, quando uma pequena questão, tem uma super reação excessiva que vai além do gesto em si nós então chamamos a esse processo de uma super reação ou overreaction: uma reação exagerada e ela é um sintoma de que aquilo dialogou com muito mais coisa, ou seja alguém cortou minha frente no trânsito - um gesto pequeno - eu arrisquei minha vida perseguindo a pessoa tomado de Cólera cheio de Ira é sinal de que eu não estou debatendo uma questão de trânsito estou batendo algo estou debatendo algo muito maior muito mais profundo algo que tem a ver com a minha própria existência e que isso é apenas um sintoma, um sintoma que eu devo analisar pensar, ou seja é um ponto para o meu conhecimento.
Tudo aquilo que me provoca enfrentamento, aquilo que me provoca uma oposição ao meu desejo é provavelmente um exercício uma pessoa complicada uma pessoa agressiva está ali para fazer com que eu não tenha tranquilidade com a minha vaidade com meu eu, com a minha ignorância, com a minha raiva que é um veneno do Espírito, ou seja, dentro de todas as religiões ocidentais, o ódio é um descontrole e o descontrole é uma falta de compreensão do plano de crescimento dentro do budismo ou do plano de Deus para mim. Dentro do cristianismo se eu fui tentar uma coisa e ela não funcionou se na hora que eu ia ser atendido o guichê foi fechado se no momento que eu saí sem guarda-chuva começa um temporal se eu fico gripado no dia de uma experiência profissional importante esses são pequenos exercícios para eu saber que a minha vontade não é soberana comando no mundo que eu não sou onipotente e o meu eu deve se curvar ao imenso oceano de coisas contrárias porque a ira quase sempre é um exercício terrível de Narciso que vaidade, por isso que a vaidade é tão importante como o primeiro pecado como Fulano pode me dizer isso, quem ele pensa que é, como esse passou na minha frente, como essa pessoa me irrita em casa, porque isso está fazendo barulho a todo instante eu me vejo como centro do universo e o universo me convida permanentemente a sair dessa posição protagonista entender que eu não tenho poder algum sobre as coisas ao meu redor e a todo instante eu serei testado e testado para saber se eu sou dono da minha paz ou se a paz pertence ao outro.
Então é por isso que a filosofia estoica destaca também a tranquilidade da alma a capacidade que eu tenho de entender que eu posso mudar algumas coisas e a outras que não tenho nenhum poder eu devo obter essa tranquilidade que os filósofos chamavam de ataraxia - a capacidade do autocontrole aquilo que acontece eu devo ser indiferente. Eu não posso mudar muita coisa há pouco espaço de manobra para minha liberdade e eu devo me concentrar naquelas poucas coisas sobre as quais minha vontade tem alguma ação.
Filósofos, como por exemplo: Imperador Marco Aurélio, como Cícero, como Sêneca, como Epiteto, sempre nos aconselham a controlar essa Ira que é um sinal de falta de Sabedoria. Você está irritado porque alguém falou mal de você? Você está tomado de Ira porque disseram que você fez tal coisa? Pense apenas, imagine, se soubessem tudo que eu fiz, só sabem isso! Felizmente Graças aos Deuses, só comentam esse defeito meu porque se soubessem todos os meus defeitos aí eu estaria perdido!
Aquilo que dizem de mim pode ser verdade ou mentira. Aquilo que dizem de mim é unicamente expressão do que eu sou ou do que eu não sou. Se disseram que eu sou agressivo que eu sou irritadiço e eu sou, as pessoas me conhecem, não há porque ficar mais irritado ainda e se eu não sou elas não me conhecem logo porque eu ficaria irritado? Dizem que eu sou lento ou dizem que eu sou tomado por exemplo de avareza, eu vou refletir "eu sou lento, eu sou avarento?, se elas estão dizendo a verdade eu concordo nossa você me viu!" Se eu não estou sendo julgado com precisão eu vou dizer "Interessante não consegui ainda me mostrar ao mundo ou é uma calúnia ou a expressão da Verdade" porque ficar irritado?
A irritação é sempre prova no estoicismo de falta de Sabedoria a irritação é um desequilíbrio, uma inquietude que mostra que você ainda não se conhece você não sabe quem você é e que a sua paz não lhe pertence mas pertence ao mundo assim o mundo pode permanentemente tirar a sua paz a qualquer instante, o mundo pode chegar lá e dizer algo fazer algo e você perde completamente o controle.
Para o cristianismo é uma falta de capacidade de imitação do mestre sempre manso e humilde de coração. Para o Budismo é uma exacerbação do eu, eu acho meu eu central e a ilusão do eu faço com que eu ache que todas essas coisas acontecem por minha causa o budismo recomenda que eu evite o ódio porque eu vou ter que entender a ignorância é uma das grandes pragas contra as quais o budismo luta eu vou ter que entender que eu não sou senhor de tudo.
Eu posso sentir a dor de ter chutado uma pedra posso sentir a dor de ter sido insultado mas não posso transformar isso em ódio porque o ódio aumenta a ignorância ele é fruto da ignorância e o ódio aumenta a fixação do meu eu especificamente do meu eu vaidoso que se acha possuidor de virtudes e que não pode ser atacado. A Ira é um pecado capital a paciência é uma virtude e a virtude se exercita diariamente através da concepção de que minha irritação é sinal claro de que eu não tenho controle das coisas. a minha irritação é sinal Claro de que minha vaidade ainda me domina a minha irritação é algo que eu devo pensar e repensar e agradecer para cada chance de cada pessoa na teoria que me enfrenta que diz o contrário do que eu penso ou até que me agride que isso é uma expressão da pessoa uma pessoa sábia não entrega a sua tranquilidade para os outros uma pessoa sábia entende profundamente que a sua paz lhe pertence.
Como um patrimônio o sábio não se abala, o sábio não se irrita, o sábio entende que sim, aquilo é contrário, é o que eu queria aquilo, dificulta meu plano no momento. Aquilo me atrasa mas o sábio não coloca toda força da Ira porque a ira é uma infantilização uma teimosia como se eu adulto me transformasse de novo em uma criança contrariada.
As crianças contrariadas são dominadas pelo sentimento. Não podem controlar os não aprenderam ainda o poder da razão e a capacidade que eu tenho sim de sentir um pouco mas de mal no mundo contemporâneo no mundo da internet a expressão do ódio da Ira nas redes e quase uma obrigação as pessoas são afogadas nesse senso violento irado são muito pouco pacientes, julgam rapidamente protegidas pelo anonimato da internet, lançam seus ataques constantes e irados sobre o mundo cabe as pessoas equilibradas não darem alimento como se dizem para os trolls, ou seja ao não responder no mesmo tom ao não aceitar a provocação eu acabo dizendo então que eu não vou alimentar a sua raiva porque esta sua Ira é sua é um código seu é uma gramática sua, é uma energia que me pertence eu não vou ser o impulsionador alavanca, o trampolim para sua raiva e assim eu não alimento monstros que podem crescer e dialogar com os meus monstros.
Também deixo que a pessoa enraivecida siga adiante sim o mundo a todo instante sem cessar sem parar o mundo nos enfrenta e se na Grécia era uma virtude ou reagir a esse mundo se no mundo da internet responder com mais palavrões com mais agressividade com humor mais agressivo com ataques mais pessoais isso possa ser visto por alguém como uma virtude é uma amostra de que aquele que me provocou venceu Fulano lhe colocou um apelido nas redes Fulano fez algo agressivo para você é um problema dele ele tem dificuldades com você ele não consegue aceitar é uma escolha dele é uma escolha absolutamente pertencente a ele e ao fazer tudo isso ele pergunta vai entrar no meu joguinho vídeo raiva vai ser irado como eu no sentido de tomada de Cólera vai se infantilizar vai mostrar que tem insatisfações com a sua vida que devem ser transportadas para o outro? É uma pergunta e aí algumas pessoas aceitam e outras pessoas rejeitam a participação nesse jogo.
A Ira é um sinal de falta de paciência, de falta de conhecimento, de falta de controle, de falta de Sabedoria e - se eu fosse religioso - de falta de Deus, de falta de tranquilidade dada pela certeza que Jesus é o Deus da paz, Jesus é o Deus dá tranquilidade.
Todas essas reflexões em vários campos do religioso psicanalítico do histórico ao literário que eu possa dar uma resposta em época tão tomada pela Ira tão cheia de sentimentos irados que eu posso fazer da minha paz, da minha paciência, da minha estabilidade, da minha tranquilidade, um grande projeto de vida.
Sigam o conselho dos Alcoólicos Anônimos só hoje eu não responderei aos ataques agressivos da internet, só hoje eu entenderei que aquela buzinada no trânsito não é pessoal não é algo para mim mas é a dor de alguém que tem muita pressa porque não tem tranquilidade porque interpreta o mundo como algo que o enfrenta diariamente. Eu entendo a dor do outro aceito, deixo seguir porque eu não quero fazer parte desse jogo."
Leandro Karnal é um historiador, professor e escritor brasileiro. É um dos maiores e mais respeitados pensadores brasileiros contemporâneos.